sábado, 25 de janeiro de 2014



Estamos perdendo nossos mestres, nossos ídolos e amigos. Mas fica a saudade dos velhos tempos, dos momentos vividos com alegria naquele colégio, onde estudou Érico Veríssimo.
As festas do Colégio Cruzeiro do Sul já não serão as mesmas, sem a presença marcante, da nossa querida professora Zina Appel.
Ela foi embora em paz, enquanto dormia em sua casa, em Porto Alegre. A notícia chegou agora, através da neta Suzan Causey, residente nos Estados Unidos. Ela ainda teve a felicidade de participar da festa dos 99 anos da sua amada avó, por quem nutria um grande amor.
Que Zina Appel seja feliz, em sua nova morada.

 Regina Lemos

sábado, 23 de junho de 2012

Sueli Costa // Foto Regina Lemos

  LILICA.LEMBRAM DELA?...SUELI COSTA DA TURMA F DA ESCOLA NORMAL DO CRUZEIRO.

Professora Dione Souza em junho 2012 / Foto de Regina Lemos

. PROFESSORA DIONE SOUZA COMEMORA SEU NIVER COM A FAMILIA E AMIGOS.JÁ PASSOU DOS 80 E ESTÁ EM PLENA FORMA.QUE TENHA MUITOS LINDOS ANOS PELA FRENTE.

História do Bairro Teresópolis

História do Bairro Teresópolis - citados o Colégio Cruzeiro do Sul, Igreja Episcopal, Igreja Nossa senhora da Saúde, Colégio São Luiz, Praça Guia Lopes......................


TERESÓPOLIS
A área onde situa o bairro Teresópolis fazia parte da Sesmaria de Sebastião Francisco Chaves. No ano de 1876, Guilherme Ferreira de Abreu loteou um terreno de sua propriedade, na qual se assentaram algumas famílias de imigrantes italianos, e o nome de loteamento teria sido homenagem a seu irmão, Francisco Ferreira de Abreu, médico carioca que foi agraciado por D. Pedro II com o título de Barão de Teresópolis.
Por desfrutar de clima ameno devido à presença de mata nativa, havia na área algumas chácaras destinadas ao repouso e veraneio e outras à produção de hortifrutigranjeiros, com destaque para as parreiras e produção de vinhos, bem como a criação de animais de pequeno porte.
A partir de 1901, foram comercializados outros terrenos pela Companhia Territorial Rio-Grandense, empresa responsável pelo loteamento de áreas em toda a cidade, configurando o bairro enquanto tal. A Praça Guia Lopes — localizada em uma área doada por Maria Luiza Fernandes, esposa de Antônio Manuel Fernandes, expresidente da Câmara Municipal – tornou-se o núcleo central de Teresópolis, e seu primeiro nome foi Praça Dona Maria Luiza.
A circulação de bondes no bairro, no início do século XIX, proporcionou o aumento da população do mesmo e, logo em seguida, foi construída a Capela Nossa Senhora da Saúde, em homenagem à protetora dos imigrantes italianos que ali residiam.
Em 1910, acontece na praça a primeira Festa da Uva do Rio Grande do Sul, organizada por moradores da Vila Nova e Teresópolis. O bairro também foi responsável pela realização da segunda Festa da Árvore, existindo ainda hoje, na praça, um monumento em referência à preservação das mesmas.
Em 1916, a capela tornou-se paróquia e, logo após, sede de curato. A instituição foi responsável pela criação da Escola Paroquial, que mais tarde concretizou-se enquanto Colégio São Luiz. 
Outra instituição a fazer parte do Bairro foi a Igreja Episcopal Anglicana do Brasil em 1923, construída sob influência da arquitetura gótica. Antes da sua construção, a Igreja instalou-se, em 1916, na hoje extinta Escola Cruzeiro do Sul, na qual passaram célebres personalidades como Erico Verissimo e Josué Guimarães.
Posteriormente outras importantes instituições vieram a se integrar ao Teresópolis, como o Hospital Espírita de Porto Alegre (1914), o Círculo da Luz (1954), que é uma organização baseada na doutrina espírita de Allan Kardec, o Departamento de Tênis do Clube Leopoldina Juvenil (1938), que posteriormente concretizou-se no Teresópolis Tênis Clube (1944), o Instituto Feminino de Correção (1950), inicialmente organizado pelas irmãs da ordem religiosa do Bom Pastor, e que passou a denominar-se Penitenciária Feminina “Madre Pelletier” (1970), o Patronato Lima Drummond (1946), uma Fundação destinada à recuperação de presidiários, a Casa Bom Pastor (1936), atualmente um pensionato feminino, e a Sociedade Beneficente Nossa Senhora da Saúde de Teresópolis (1958), que desenvolve um trabalho na área da Assistência Social.
Hoje, o bucólico bairro de Teresópolis convive com intervenções da urbanização da Cidade como a construção da III Perimetral, que trouxe transformações de porte para área.
Referências bibliográficas:
FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: Guia histórico. Porto Alegre: Ed. Da
Universidade/UFRGS, 1992.
RIELLA, Carlos, Et al. Teresópolis. Porto Alegre: Unidade Editorial da Secretaria
Municipal da Cultura, 2004

quarta-feira, 13 de julho de 2011

MINHA VIDA NO INFERNATO Norton A.Coll 1963

Logo após minha querida mãe ter falecido (2006) em Santa Catarina, recebi um pacote, de alguns conhecidos da família, com fotos e recortes antigos que ela guardara consigo.

Junto com esse material, achei o original desse livreto. A parte sobre o Internato foi escrita nos primeiros meses de 1959 quando fui recebido como estudante no saudoso Colégio Cruzeiro do Sul. Lá fiquei até completar o Curso Científico em 1963. Com o tempo eu acrescentara minhas primeiras considerações sobre o que achava da vida. Poucos colegas o viram naquele tempo.

Passei a limpo, mas deixei-o do jeito que foi escrito, sem tentar corrigir alguma incorreção. Não chega a ser uma obra literária, mas guarda um pouco do frescor de meus preciosos anos de juventude.

“Se não me falha a memória,

deixei o urinol embaixo da

mesinha de cabeceira”.

Lord Byron

Qualquer coincidência com pessoas, vivas ou mortas, é proposital.

Todos os direitos são reservados, e tão reservados que até o dia de hoje ninguém os encontrou.

Nota informativa: O internato referido é o anexo ao Colégio Cruzeiro do Sul, de Pôrto Alegre, RGS, que fechou suas portas em 2002, após 90 anos de existência

INTRODUÇÃO

As primeiras impressões que temos da vida logo que se chega a um internato são incomparáveis. Tudo nos suscita revolta, ou pelo menos, inquietação.

Muitas vez, é o primeiro contato com o mundo propriamente dito. É o fim do lar. Companheiros de mais idade e experiência tornam-se os mestres da vida. Suas frases ficam inesquecíveis; seus gestos serão dignos de imitar.

A verdade é que, em certas situações, o desejo de escrever é mais intenso: como uma necessidade a satisfazer. Um internato pode produzir essas condições. Talvez a coisa mais importante que se faça lá seja escrever. Vem a ser um meio de libertação, uma libertação de tudo, não só daquela situação particular, mas do mundo todo que nos cerca; talvez o único meio. A princípio, começamos a escrever revoltados sem saber bem contra o quê. Depois, a necessidade de revolta aumenta, junto com o desejo de não resistir mais. E no fim, ainda não sabemos o que havia realmente de errado lá ou em qualquer outra parte.

Muitas páginas se perderam, muitas nosso juízo aconselhou a não guardar. Restam apenas centelhas das emoções vividas como eco das vozes do passado no corredor da vida.

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APRESENTANDO

Tenho delicioso prazer em apresentar esses relatos feitos num certo internato em que estive e ao qual, por casualidade, consegui sobreviver.

De qualquer modo, vejo logo que não sirvo para escritor. O diabo é que não me sinto infeliz, nem, tampouco, sou anormal; nunca tive ama-de-leite preta para lembrar em prosa, nem fiquei muito tempo longe de minha terra natal que, aliás, nada tem de especial. Entretanto, posso dizer-lhes algo a respeito dos internatos em geral, pois não creio que os outros sejam melhores do que aquele em que me trancafiaram

No internato, o indivíduo se torna introvertido e sentimental. Após a lida diária, ele contempla filosoficamente as estrelas, até lhe doer o pescoço, em meio a noite cheia de neblina, que na verdade é a fumaça dos cigarros de maconha, ouvindo ao longe o acuar triste e melancólico de possíveis coiotes, que na realidade são vira-latas sardentos da redondeza, escutando o rumorejar afastado do mar, que de fato é o grunhir de seu próprio estômago.

Ele é um apático. Antes de dormir, porém, sente uma sensação de pequenez. Seu primeiro desejo é o de matar-se, mas lembra-se dos conselhos de casa para não obedecer aos primeiros impulsos. Quer revoltar-se, mas o

chicote do Monitor o conforta e estimula. Deita-se e dorme com medo.

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Quanto à aparência física, os internos são bastante magros. Prova disso é que a distribuição no banho é feita colocando-se um infeliz sob cada furo do chuveiro e é freqüente a perda desses espécimes durante a descarga dos sanitários.

Contudo, existem momentos de alegria. Permite-se agora, por exemplo, que, na hora dos exercícios físicos da tarde, todos tenham o direito de exercitar-se carregando pedras para a construção de gigantesca pirâmide para o Diretor do internato. Foi sugestão de um dos internos, que é versado na história da civilização egípcia. Como eles planejam, logo que terminarem, colocar o Diretor ali dentro, mesmo que esteja ainda esteja vivo, trabalham com diabólico contentamento.

Depois de lerem isto, creio que os senhores leitores, ao passarem por um internato, tirarão o chapéu em sinal de respeito pelo sofrimento alheio.

O autor

Vitimado por estranha moléstia,

conhecida por “internose”.

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A TORTURA DA POSIÇÃO DE CÓCORAS

- Tese apresentada para a admissão do escritor ao Manicômio Federal, com alusões aos banheiros do internato

Um dos aspectos mais interessantes de nossa Cidade de Recalcados é a existência de estranho sistema de gabinetes sanitários. A aparência de cada um deles é de um buraco circular escorregadio e fétido. Essa sua terrível apresentação é justificada, em parte, pelo sentido prático que possa ter. Entretanto, vem nos assemelhar mais ainda com outros animais irracionais. Vai também concordar com a teoria de um certo Simius Darwin que dizia ser o macaco descendente do homem.

O interno, nessa trágica e animalesca posição, sempre adquire sério complexo de inferioridade, semelhante que se torna aos membros de certas tribos da África e da Índia em seus estados letárgicos de adoração.

Devemos, pois, constantemente lutar para que sejam dignificados nossos esforços comuns.

PEDIDO DE ATESTADO DE SAÚDE DE UM INTERNO

Caro Dr.______

Solicito-lhe um atestado de sanidade mental e de que não possuo doenças contagiosas, exceto, é claro, as que adquiri aqui. Já pedi este atestado a vários médicos, mas ainda não entendi a letra de nenhum deles. Como não posso comparecer por estar de quarentena, remeto-lhe uma foto minha que, embora seja um pouco antiga, mostra bem a fotogenia. Note-se que eu sou aquilo preto, nuzinho, em cima da cama.

Antecipadamente grato,

(Dependendo do preço esta frase pode ser considerada nula)

Fulano de Tal

ATESTADO

Atesto, para fins que desconheço, o quase perfeito estado de sanidade mental, fora certa neurose que obedece estranhamente a fases da lua, de F. de Tal, e também asseguro que o dito não possui qualquer moléstia infecto-contagiosa, não mencionando pequena pneumonia em vias de supuração e glaucoma no olho esquerdo, podendo atingir também o direito, doenças essas que não são absolutamente transmissíveis a não ser que o referido se aproxime de pessoa ou animal são.

Ass.: Dr._______, Médico licenciado

NOTÍCIAS

Segundo declararam autoridades médicas nas recentes pesquisas feitas no internato, qualquer enfermidade tem facilidade em se alastrar devido a todos viverem apertados em cubículos. Periodicamente, é feita pelo Serviço de Saúde Pública uma operação desinfetante através de gases mortais aos micróbios e macróbios que lá infestam. É a tarefa mais detestada pelos infelizes funcionários, segundo informaram.

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Em cerimônia pomposa, com a presença do representante do papa, foram canonizados novos internos que terminaram sua temporada de santificação no internato.

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Copiosas lágrimas vieram aos olhos de Hitler ao visitar, em 1941, o internato. Disse ele, emocionado, que não teria coragem de submeter os judeus ao mesmo tratamento.

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O gabinete psicológico examinou recentemente o caso de um interno. Após o preenchimento de 72 folhas de questionários e depois de ter sido argüido por oito especialistas, chegou-se à conclusão que aquele fora um caso esquecido por Freud.

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A seção de enfermaria do internato, conhecida pelo apelido de “filial do campo santo”, é administrada por competentes elementos. Segundo as estatísticas, as doenças mais tratadas são: a prisão de ventre e a diarréia, ambas tratadas com massagem de iodo na barriga e essência de olina.

E agora, uma notícia alegre: anunciamos o falecimento de mais um interno, ocorrido ontem, cujo nome e endereço permanecem desconhecidos ainda. A “causa mortis” foi grave inanição. O enterro foi realizado no selvagem pântano dos fundos do internato, acompanhado de grande séqüito de cachorros e moscas, sob a fiel vigilância de vários urubus. Pedimos às pessoas possuidoras de parentes naquele reformatório o favor de recolher este e mais 63 cadáveres que lá se encontram.

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Encontra-se também em estado de choque há três dias um interno que, desprevenidamente, aspirou o aroma que emanava de uma panela de comida.

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ENTREVISTA

Obedecendo a alguns pedidos, entrevistamos na semana passada um interno em seu “habitat”.

Segundo pudemos averiguar, possui ele uma série interminável de desajustes psicológicos, entre os quais, a claustrofobia, o complexo de perseguição e o complexo de ter complexos. Na última vez em que saiu para o mundo exterior, sentiu-se tão desambientado, que teve de ser trazido de volta, desacordado.

CORRESPONDÊNCIA

José Esqualidus - Sou baixo, magro e feio; além disso, estou no internato há 19 anos. Desejo manter correspondência com indivíduos do sexo feminino de qualquer idade, raça ou cor. Cartas para o internato. Cela 426.

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Emprego - Precisamos de elementos que sirvam de material para estudo nas aulas de Anatomia. Dá-se preferência a indivíduos que estejam ou estiveram num internato devido a sua compleição física, com fácil exposição das formações ósseas.

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SER INTERNO

Ser interno é desdobrar fibra por fibra a dura carne do almoço.

Ser interno é beber água poluída nas refeições, como se proviesse de fonte cristalina.

Ser interno é sonhar que o colchão rijo onde dorme é macio como nádegas infantis.

Ser interno é permanecer sadio apesar do convívio com pestilentos.

Ser interno é saber sorrir quando alguém lhe disser que havia uma barata no feijão.

Ser interno é imaginar belas mulheres e ver-se ao lado de obscenos mandriões barbados.

Ah! Mais sublime que a maternidade é a “internidade”.

DIÁRIO

Do diário de um interno que, infelizmente, não conseguiu sobreviver a sua estada no internato:

“Era um dia normal no internato onde eu cumpria pena. Os mais fortes esfolavam os mais fracos e punham suas peles para secar; alguns, nos cantos, tentavam mastigar inutilmente o bife do almoço; os de menos idade caíam nas escadas com freqüência e abriam o crânio.

De repente, como em uma lenda, surgiu envolto por uma nuvem de pó e sujeira, um aluno resplandecente, o qual anunciou haver naquele dia licença de saída para todos.

Houve um delírio geral. Alguns que estavam sem saída há vários anos, não agüentaram e tiveram um colapso nervoso. Um grande número, sofreu síncopes; outros, ainda, não acreditaram e mataram o mensageiro a pauladas.

Logo após, porém, surgiu outro emissário e desmentiu o que o primeiro dissera. Bateu a sineta, então, para o finge-que-estuda.

Que dia monótono e enjoado, igual a todos os outros...”

O MARTÍRIO DA FOME

A espécie mais resistente fisicamente é a dos “internus vulgaris”. Em experiências de laboratório com ratos, verificou-se que os mesmos, submetidos à alimentação equivalente a do internato, pereciam após 24 horas em meio a violentas convulsões.

Apesar desse fato, os internos continuam a subsistir teimosamente. Nero teria ficado exultante vendo esses seres se digladiando nas arenas do refeitório. Freqüentemente é sorteada, após disputada e sangrenta batalha campal, a quota de carne de um interno faltoso.

Em tudo, porém, vê-se a diligência das cozinheiras. Durante a falta de alimentos, é impossível dormir à noite com os tiros. São períodos terríveis para os cães da vizinhança.

É triste ver esses pobres abutres olhando esfaimados para um companheiro mais magro e doente. Eles sabem que, ao morrer um deles, a comida no dia seguinte vem mais farta...

Apesar disso, é um grupo conformado, pois tem diminuído sensivelmente o número de suicídios.

BIOGRAFIA DO AUTOR

(escrita pelo próprio)

I

É difícil escrever uma biografia quando se trata de uma vida tão vazia, mas alguns fatos perturbaram tanto a existência de outras pessoas, que nos achamos no dever de registrá-los.

Aos quatro e anos e meio, foi mordido por um cachorro da vizinhança, tendo tido uma reação inesperada: retribuiu a mordida do animalzinho com tal violência que esse teve de ser medicado às pressas.

Aos 10 anos, causou seu primeiro colapso cardíaco em professores ao se balançar no lustre da sala de aula com um vidro de nitroglicerina na mão.

Quando chegou aos 12 anos, foi acusado pela empregada de excesso de normalidade, quando foi, então, detido num internato para cumprir pena até a idade da discrição, que não foi tão discreta assim. Apesar de ali só conhecer o mundo exterior pelo rádio e por jornais velhos do banheiro, possuía uma boa idéia a respeito.

Quanto ao temperamento, é muito desembaraçado, embora sempre ruborize ao entregar material para exame de urina, como todo mundo.

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Tendo visto que não dava para nenhuma profissão, resolveu escrever livrecos, que, aliás, é a melhor maneira de exercitar o ócio.

Seus livros têm mais divulgação e sucesso nas baixas rodas, mas ele espera firmemente que a sociedade venha a descer até aquele ponto.

II

Todos defendem as crianças, mas elas sabem aproveitar-se de sua inocência. Eu, por exemplo, explorava até o fim o fato “deles” não saberem que eu sabia tudo o que eu sabia. Sempre conseguia uma entrada de cinema ficando pendurado pelo lado de fora da varanda do apartamento...e morávamos no sexto andar.

Todos nós já fomos crianças. Entretanto, sempre esquecemos disso quando se trata de certas situações especiais. Como nas ocasiões em que entramos num ônibus superlotado. Os “enfants terribles” são facilmente reconhecíveis. Em geral, esses seres celestiais encontram-se nos colos de suas genitoras, que estão demais absortas reparando no vestuário das amigas, para se ocupar no comportamento dos tinhosos. Como característica, apresentam aspecto quase humano, fora os gritos e gemidos que produzem constantemente. Acham-se sempre cobertos de espessa camada de manteiga, ou de outro tipo de gordura, eventualmente, de lama seca. Um de seus

passatempos prediletos é chutar ou pisar nossos calos, ou, conforme a preferência de cada um, puxar a gravata, amassar o jornal e arrancar óculos. Não vamos citar os que investem em agressões físicas como mordidas na orelha, tapas no nariz e soquinhos em nosso estômago.

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De nenhuma valia é tentarmos agradá-los, pois demonstram de modo singular sua gratidão por serem colocados no colo, vertendo líquido particularmente fétido em nossa roupa recém saída da lavanderia. Apesar disso, possuem todas as imunidades e se ousarmos disfarçadamente dar uma palmada em suas partes tenras, lançarão vagidos aterrorizantes que nos incriminarão, com chance de fotografia em primeira página. Assim, há uma possibilidade de nos causarem uma estada atrás das grades, como aconteceu com a pessoa do escritor.

A despeito disso tudo, nada conhecemos do que vai dentro de suas máquinas pensantes. Estive procurando lembrar...

III

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Nasci como qualquer um. Parasita desde pequeno: umbigo grande como uma mangueira. O médico achou interessante; botou num vidrinho. Minha tia solteirona veio ver se era homem ou mulher: Urinei-lhe no rosto com prazer. Ela gostou: “menino de personalidade”. Com 12 meses apenas completei meu primeiro aniversário, mostrando bem minha precocidade. Minha madrinha, na primeira e única vez que apareceu, deu-me um

cofrinho de madeira com 100 cruzeiros dentro, para desenvolver minha capacidade econômica. No mês seguinte, meu pai o quebrou, por necessidade. De nada adiantaria, muito cedo eu já gastava o dobro da mesada que recebia.

Como toda criança, eu era egoísta. No dia em que completei 4 anos, cometi minha primeira tentativa de homicídio: o filho dum vizinho não queria me emprestar seu trenzinho. Minha mãe acudiu e fez uma advertência severa. “Tendências criminosas”, comentou meu genitor, de modo otimista.

Certa vez, meu pai decidiu levar-me a uma loja de brinquedos para que eu escolhesse algum. Um erro. Depois de concluir que nem metade do orçamento do Brasil seria suficiente para atender meus pedidos, resolveu ajudar na decisão. Levei um carrinho de plástico, baratinho e resistente, pois durou uma semana.

Um dia acordei e notei que minha mãe estava anormalmente gorda. Perguntei e me disseram que eu iria ganhar um irmãozinho. Não vi relação entre uma coisa e outra, mas já tinha visto outras mulheres naquele estado e não estranhei. Eu me acostumara a não estranhar o mundo dos adultos com seus costumes idiotas. Perguntei por que o papai não engordava também. Não entendi a resposta e fui

para o quarto pensando no que faria com um irmãozinho. E fosse um chato...

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O menino, filho da vizinha, que morava ao lado, era um sábio. Ele devia saber para que serve um irmãozinho. “Prá muitas coisas: prá gente brincar come ele, prá empurrar o velocípede, prá gente botar a culpa quando se faz coisa errada”. Entendi mais ou menos. Então, todo garoto que se preze deve ter um irmãozinho para receber ordens. Isso talvez fosse interessante.

Comecei a ansiar pela vinda do novo membro da família. Uma de minhas primeiras angústias, como diria o psiquiatra mais tarde. Até que um dia minha mãe adoeceu de repente e meu pai disse nervoso que era chegada a hora. Não perguntei como eles sabiam disso, aliás, nunca duvidei da onisciência de meus pais: se eles diziam que era, então era. Fiquei com a vizinha, esperneando. Que diabo! Eu iria perder o melhor da festa!

Minha curiosidade aliada à imaginação fez ver cenas espetaculares: minha mãe aberta ao meio, meu pai desesperado e o irmãozinho recém chegado, rindo de todo mundo. Era demais: quando a coisa era interessante, não era para criança ver!

Por fim, minha mãe voltou. Vinha mais abatida. Meu pai, exultante. Naquele dia, sorriu para todo a rua, até para aquele velho antipático que lhe emprestava dinheiro de vez em quando. Eu queria ver como “ele” era. Será que já podiam colocá-lo no chão? Disseram que não. Olhei para dentro do bercinho e confesso que não fiquei muito entusiasmado: ele era careca, sem graça, sempre chorando e tinha uma cara meio boba. Talvez nem soubesse o que era um velocípede.

Meu irmão me decepcionou. Era um menino diferente de mim. Mais sensato, um tipo de sensatez que nunca cheguei a apreciar. Quando íamos fazer alguma sujeira da grossa, ele nunca achava bom.

Brigávamos muito. Eu levava sempre vantagem por ser o mais velho. Aqueles tapas que eu lhe apliquei ao menos serviram para criar em mim alguns traumas importantes, e mesmo um complexo de culpa, como bem salientou posteriormente o mesmo psiquiatra.

Quando chegou o terceiro, não nos importamos muito. Era como um intruso em nosso mundo. Teria de ser iniciado em todas aquelas coisas que nós havíamos descoberto. Isso não valeria a pena; iria tomar tempo.

Ao final, ficamos os três nos digladiando como cães e gatos. O terceiro servia como de catalisador das grandes surras que recebíamos. Aquele tempo sim era bom: quanto amor, quanta harmonia!

Meu primeiro dia na escola mostrou-me o que era a vida em sociedade. E a primeira grande desconfiança foi a de que a espécie humana não fora feita para viver em sociedade. Mais tarde, confirmada. Era uma espécie de convívio de antipatias.

Logo notei que as meninas usavam banheiro diferente. “Seria alguma doença contagiosa?”, perguntei a mim mesmo. Não deixavam a gente entrar lá. Havia muita coisa misteriosa, que despertava a curiosidade e que permanecia sem resposta.

A professora era simpática. Cercada de puxa-sacos. Certa vez, fiz-lhe algumas perguntas espertas e ela começou a se interessar por mim. Era casada: um camarada feio, magro. Como poderia ter-se tornado marido de uma moça tão sábia como nossa professora?

O lanche na escola era horrível. Havia filas, apertos. Compreendi o que era competição. Nada era como em casa. Briguei com um aluno alto do 4º ano que havia roubado meu sanduíche. Um professor me repreendeu! Tudo me parecia injusto. Comecei a achar semelhança entre os professores e os policiais.

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Meus primeiros contatos com o elemento feminino foram desastrosos. Como podiam ser tão desinteressantes? E que conversas? Não gostavam de jogar futebol nem de subir em árvore. Tinham umas manias esquisitas. Tentei ser agradável,

mas era muito enfadonho. Em todo reino animal, não devia haver ser mais detestável do que a mulher!

Quanto à aparência física, também eram bem diferentes. Convenci-me disso quando entrei no banheiro das meninas. Gritos histéricos, desesperados: até parecia que eu estava fazendo um assalto. Fui levado à diretoria e chamado à atenção. Um professor mais sofisticado chegou mesmo a me cognominar de “desviado sexual”, uma expressão que só vim a entender muito tempo depois. Comecei a considerar as mulheres um tipo de pessoas muito difíceis de tratar. Nem todas eram como a professora.

Com o tempo, fui aprendendo mais a respeito delas, principalmente com os “professores” de minha rua. Tinham de 10 a 12 anos, mas sabiam tudo sobre a existência. Não entendia por que os adultos não sabiam disso. Teriam esquecido ou eram mentirosos de marca maior? Meu curso de aprendizado extra-colegial foi proveitoso, pois no fim do primário eu, mais ou menos, começava a entender para que serviam as garotas.

V

A primeira página de educação sexual que conheci na vida

foi a porta do banheiro do colégio. Muita coisa aprende-se depois, mas os fundamentos estavam ali.

Lembro-me da primeira vez que um “mestre”, companheiro de estripulias, apresentou-me essa porta. O que eu não entendia, ele ia me explicando com vasto vocabulário técnico. É verdade que, na porta, não havia uma preocupação didática na exposição

do material. Em compensação, era profusamente ilustrada com obras primas da pornografia. De vez em quando, no colégio, estabelecíamos concursos premiando os melhores trabalhos. Além disso, o odor característico do recinto fornecia o ambiente adequado a uma exposição de tão importante teor.

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Mais tarde, em livros caríssimos, descobriria os mesmos desenhos descritos de outra forma, mais harmoniosos, com nomes científicos em baixo. Mas esses nomes de modo algum se prestariam como impropérios para uso diário. Somente o vocabulário original da porta do banheiro serviria para tal fim. Ocasionalmente, encontrei outros elementos sendo aproveitados para a divulgação do assunto, tais como mesa de bar, cadeira de escola, bloco de rascunho, banco de igreja, mas a porta do banheiro permanecia o meio mais usado. Note-se que a preocupação é sempre a mais desinteressada, não visando lucros para o educador anônimo, procurando apenas lançar a semente da dúvida que produz aquela pergunta profunda às mães: “Afinal, de que diabo de lugar eu vim?”.

resto de meus dias de infância, eu fazia tudo o que os garotos de minha idade faziam, brincava com o carrinho-de-bilha, a pipa, jogava pelada, fora outras coisas que não eram exatamente daquela idade.

Fui, contudo, sempre ambicioso. Recordo bem o grande assalto que fiz às Lojas Americanas. Foi uma emoção e tanto. Planejei durante uma semana inteira. É uma pena que tenha sido capturado em flagrante: poderia no futuro desenvolver uma carreira. Por outro lado, foi fácil desconfiar logo de mim: eu era o freguês com a cara mais infantil e com os bolsos entulhados de bolas de gude e carrinhos. Tive de conversar longamente com o gerente. Fazia força para não chorar, mais de raiva do que por outra razão. “Roubar é feio”, dizia ele. Isso eu estava cansado de ouvir. Depois, mandou-me para casa com ar paternal. Saí escoltado por um guarda. Todos me olhavam encantados. Eu me senti como o Al Capone desfilando em Nova Iorque, igualzinho aquele filme que eu vira na tevê.

Uma coisa, entretanto, eles não sabiam: as coisas roubadas continuavam sendo as mais gostosas e eu tinha um pião escondido dentro da calça.

Todo o domingo, fizesse sol ou chovesse, vestia o terno de linho branco, a gravata e penteava o cabelo com fixador. Era detestável colocar aquele roupa incômoda e bancar o bom menino na igreja.

A igreja que freqüentávamos seguia uma linha bem puritana. No Dia do Senhor, devíamos desviar da mente todas as preocupações do quotidiano e eu não podia fazer nada das coisas gostosas da vida de criança. Sempre me cheirou à mentira aquele versículo da Escritura que diz: “Alegrei-me quando me disseram: Vamos à casa do Senhor”.

Eu me lembro da tentação que tinha de ir ao cinema para me encontrar com a loirinha que morava ao lado, mas o domingo não era dia para isso.

Evitávamos discutir em casa, mas talvez justamente por causa dessa situação artificial, era o dia mais tempestuoso. Geralmente, eu levava uma surra que me deixava arrasado e que me fazia considerar aquele dia o pior da Criação.

A Escola Dominical da igreja estudava as histórias bíblicas e as parábolas de Jesus. A Bíblia era realmente um livro cheio de histórias bonitas e de bons ensinamentos. Alguns trechos do Velho Testamento, contudo, sempre me deixaram em dúvida sobre a santidade dos personagens.

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O Reverendo era um camarada muito simpático, com muitos

filhos, como todos os Pastores. Vivia falando do pecado, uma coisa que eu não conhecia até então, mas que era horrível. Engraçado que eu, durante seus sermões enormes, sempre sentia uma vontade louca de sair para urinar.

Entre os meninos da classe, havia um que era o mais dedicado, o Osvaldinho. Sempre asseado, bem-comportado, podia citar pedaços imensos da Bíblia de cor. Era o orgulho do professor. Minha mãe sempre me aconselhava a seguir o exemplo daquele menino modelo, que havia aprendido muito bem os ensinamentos da igreja. No fundo, eu tinha uma inveja tremenda do prestígio de que ele gozava. Ele me causava o mesmo sentimento daquele coleguinha da escola que tirava sempre nota 10 e que gostava de fazer queixa de nós para a professora. O Osvaldinho era assim, sempre pronto a delatar seus amigos como prova de lealdade ao bem, à verdade e às autoridades responsáveis.

Foi um fato profundamente chocante para mim descobrir que aquele rapazinho tão admirado mantinha estranhas relações com uns moleques da vizinhança. Desde aquele tempo eu começaria a desconfiar que a religião como fonte de comportamento deixava muito a desejar.

Meus primeiros cigarros foram um mundo de emoções para mim. Fumávamos escondidos atrás do colégio. Era delicioso. Um menino viu e foi contar ao diretor. Que vontade de esganá-lo! Meu pai veio a saber e ficou destruído um sonho de pureza que ele alimentava a meu respeito. Sabia que mais cedo ou mais tarde, isso aconteceria.

Eu também sonhava muito. A filha da vizinha do lado era uma garota espevitada, bonita como ela só, que não falava comigo. Toda a turma estava de olho nela. Na infância, vive-se num mundo de sonhos. Ela era como uma deusa, misteriosa, inatingível. Imaginava um filme em Cinemascope colorido dirigido por mim. Nele eu era também o mocinho, o salvador daquela beldade, que ficava eternamente grata a mim. Eu morria tragicamente em luta com os índios e ela ficava chorando de amargura. Todos os dias, em minha cama, quando eu pensava em minha morte heróica e injusta, vinham-me lágrimas sinceras aos olhos. Eu tinha certeza de que seria um ótimo filme dramático, se o conseguisse realizar.

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O desejo de destruir está em todos nós. Nas crianças, ele é mais livre. Um dia, resolvemos matar um cão manco dos arredores.

Foi fácil encontrá-lo, sonolento num terreno baldio, possivelmente maldizendo a própria existência. O pai de um dos nossos era professor de química e logo conseguimos

clorofórmio para fazê-lo dormir. A princípio, sacudiu muito, mas ninguém resiste a um bom sono para esquecer as mágoas. O melhor seria enforcá-lo; não deixava sujeira e era mais movimentado.

Era como se cumpríssemos um ritual. A morte sempre tem um tom misterioso e isso nos mantinha em silêncio.

Mas não ocorreu como esperávamos. Morreu estupidamente, sem resistir. Quase nos arrependemos. Pos a língua para fora como se quisesse saborear o último gosto de vida. Sonhava com bifes gordos e cadelas bonitas. Não nos convencemos de sua morte e esticamos a corda ainda um pouco. Havia um quê de sadismo em todos nós.

Senti um bem interior; era apenas um cúmplice deles. Não tinha culpa direta e, ao mesmo tempo, podia gozar aquele espetáculo fantástico. A morte sempre fascina.

Perto de onde eu morava, havia uma casa um pouco afastada da rua, onde diversas árvores frutíferas floresciam ao Deus-dará. Não sei se podíamos chamar de árvores frutíferas porque criança come qualquer coisa, de melancia a mata-cavalo. Uma jaqueira enorme era a atração principal de nossos olhos gulosos. Havia, porém, um canzarrão medonho, guarda imperturbável daquele petisco inatingível. Um belo dia, conseguimos chegar a um plano de ação formidável para a apreensão das jacas. Todos concordamos unanimemente. Eu seria um dos executantes do plano e estaria no “front” da investida.

O difícil foi convencer o menorzinho da turma a distrair o cão danado, enquanto subíamos na árvore.

Naquele tempo, não tínhamos idéia de que nós, crianças, éramos as criaturas mais egoístas que existem. Na hora da dificuldade, a gente só conseguia pensar em salvar a pele. Nada daquele heroísmo doentio que aparece nos livros. Foi o que aconteceu. Terrível quando o animal avançou em nossa direção e fez estragos nas roupas de todos, inclusive nas minhas.

Quando cheguei em casa, minha mãe calmamente cuidou dos ferimentos, mas o pai ficou desesperado; queria saber se o cachorro era raivoso ou não. Ele sempre imaginava o pior, pensava eu. Levou-me ao médico, procurou o dono, exigiu exame do cão. Em resumo, fez um estardalhaço tal que eu fiquei meio envergonhado dele perante a turma.

Bom seria se não tivesse sabido de nada. Os adultos não precisavam se meter em muitas coisas que nós sempre conseguíamos resolver. Mas eles costumam se exaltar com questões banais.

XI

A vida de criança é cheia de extremos. A uma alegria imensa, sempre se sucede uma fase profunda de. depressão. Os dois sentimentos, então, não ficam bem definidos e parecem às vezes se tocar.

Uma coisa que não se esquece é o primeiro beijo que se recebe. Eu já era um garoto crescido quando o experimentei. Tudo é novidade na infância. Depois, as coisas se tornam mecânicas e artificiais.

A vizinha era uma mocinha já crescida, de corpo bem formado, que aparecia com um namorado novo todas as semanas. Um dia, nos encontramos sozinhos no corredor do edifício. Ela me perguntou se eu usava batom. Eu tinha os lábios carnudos, intensamente vermelhos e sadios. Não

entendi a ironia e cheguei a ficar meio ofendido. Respondi que não. “Deixa-me, então, te dar um beijinho?”. Para mim, seria formidável experimentar aquilo que antes tinha visto tantas vezes no cinema e na televisão. Era algo que todos os garotos ansiavam tanto por poder fazer. E eu teria algo a contar para a turma que me aumentaria o prestígio. Disse que sim e ela me segurou com vigor, firmando sua mão na minha nuca.

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De fato, foi uma decepção! Como é que os adultos podiam viver brigando por causa daquele negócio sem graça e que não produzia bem estar algum? Como poderiam gostar tanto daquela espécie de cumprimento que só deixava um gosto de cuspe na boca? Eu não podia entender as coisas sem sentido que os adultos faziam.

*

Um outro beijo que não me foge da memória, por mais que tente, foi de um tipo totalmente diferente.

Havia uma multidão de estranhos em volta causando um abafamento incomum naquele dia. Eu tinha 12 anos, mas sobre certas coisas eu pensava como um menininho. Ao voltar da escola, no dia anterior, o porteiro dissera que minha irmã estava muito no mal no hospital e que talvez morresse. Disseram para eu não chorar. O fato é que isso nem me passou pela cabeça. Logo depois, chegaram meu pai e minha mãe. Um brilho vítreo em seus olhos avermelhados. Já os tinha visto assim uma vez.

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Em geral, a igreja só enchia assim em grandes ocasiões, como nas festas cristãs durante o ano. Minha irmã era um

neném que chorava de noite e que agora estava morta na minha frente. Tudo isso era difícil de compreender. Não se podia conversar com um neném. Ela surgiu de repente em nossa vida e num instante desapareceu.

Notei, então algo, que me deixou bastante assustado. Em torno do caixão formava-se uma fila enorme de pessoas. Disseram que eu, como irmão, devia dar um beijo em seu rosto. Eu teria que dar um beijo num cadáver! Os mortos sempre me deram medo.

Deixavam a entender que morrer era algo terrível, mas ela tinha a fisionomia serena e impassível. As crianças entendem melhor a morte que os adultos. Eu não via problemas em me conformar com aquilo.

Mas mesmo assim eu ainda deveria beijar seu cadáver. Como me repugnava fazer aquilo. Nunca mais poderei esquecer aquela sensação horrível de tocar os lábios em sua testa úmida e gelada. Um arrepio me correu a espinha, senti náuseas, talvez porque o ambiente estivesse muito quente. Compreendi que, se ela pouco chegou a representar para mim em vida, muito menos naquele estado em que estava agora.

Todos notaram minha vacilação, incluindo meus pais. Como eles se envergonharam de mim: eu não tinha sentimentos, era um insensível. Por que teria ela morrido e provocado todas aquelas situações embaraçosas e confusas?

Naquele dia, fui para o quarto do castigo sem ninguém mandar. Ali, possuía um mundo só meu. A luz mortiça dos raios de sol, coados na persiana, levavam-me a um certo tipo de introspecção que me agradava. Ali, eu imaginava tantos mundos, compunha sinfonias, planejava diabruras, fazia poesias de rimas monótonas. Começava a descobrir o valor da solidão. Naquele dia, senti uma solidão muito especial; senti que não pertencia ao mundo dos adultos, que talvez nunca fosse aceito nele. Senti que talvez não houvesse um mundo para mim.

Depois a gente descobre que o mundo todo é como o quarto do castigo. A gente pode criar muita coisa, mas não pode sair de seus limites.

FIM

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